sábado, 11 de julio de 2009

A IRMANDADE UNIVERSAL IMAGINADA: UM ESTUDO DE GRUPOS ANÔNIMOS VOLTADOS PARA ADICÇÕES NO SEXO E OU AMOR . Carolina Branco de Castro Ferreira

Doutoranda em Ciências Sociais UNICAMP/Brasil
carolinabcf.uni@gmail.com

Meu nome é J, sou mais um Dependente de Amor e Sexo Anônimo (DASA) em recuperação e só por hoje mantive meu comportamento; na doença eu só pensava nos prazeres da vida, nos prazeres do corpo, e por falar em prazer nada melhor do que o sexo, drogas e rock rol. O sexo que eu gostava de praticar era um sexo animal, um coito irracional em que a mulher não passava de uma fêmea na qual eu a transformava em um depósito de espermas; eu já gostava de sexo pago, pois não havia necessidade de me relacionar com a pessoa e muito menos intimidade, e quando já estava satisfeito ia embora e ela que se virasse. (Trecho de depoimento masculino retirado de “A jornada”- publicação DASA Brasil 10 anos)

Várias mulheres começaram a chegar e três já estavam na sala enquanto eu conversava com D. Ela me explicava o que são as Mulheres que Amam Demais Anônimas (MADA): um grupo de auto-ajuda para mulheres dependentes de relacionamentos que querem parar de tê-los de maneira destrutiva e serem viciadas por eles.


D. disse também que este grupo era baseado nos 12 passos e 12 tradições de alcoólicos anônimos e que estes foram adaptados pelo MADA, e que a forma de participação era muito importante, pois “quando eu digo que sou D. e digo que sou uma MADA em recuperação, todas já sabem e todas já se identificam, é pelo fato de estarem aqui só pessoas que se identificam que o grupo dá certo”.
A reunião começa e a coordenadora do dia se apresenta e explica o que é o grupo. As reuniões são ritualizadas e parece haver um padrão para os encontros. As sessões duram em média 2 horas e na primeira parte são lidos trechos de textos (“literatura”) e em seguida é aberto para os comentários das participantes, o tempo de fala é sempre cronometrado. Na segunda parte da reunião as mulheres podem falar e “partilha r suas experiências de sofrimento e dependência”. Há um momento especial para as que estão ali pela primeira vez falem, se apresentem e digam como chegaram ao grupo. (Notas de campo, MADA São Paulo, 20/12/2006)

Esta é minha primeira observação participante no grupo Co-Dependentes Anônimos (CODA). Este grupo se reúne as quartas no salão da igreja N.S. da Pompéia. Eu cheguei com 30 minutos de antecedência e comecei a conversar com o primeiro participante que se dirigiu à sala, me apresentei, falei de minha pesquisa e solicitei, caso fosse possível, assistir a algumas reuniões do grupo. R. respondeu que tudo bem, mas ele teria que consultar a “consciência coletiva”( os outros participantes),mais uma vez, reiterou de forma positiva minha participação, pois são as pessoas que são anônimas, não a “irmandade”. Nós ficamos conversando durante uns 20 minutos até todos (as) chegarem para a reunião. Ele me disse que há 14 anos freqüenta concomitantemente grupos anônimos, o primeiro que freqüentou foi os Neuróticos Anônimos (N.A), freqüentou bastante tempo o DASA, também freqüentou os Fumantes Anônimos (F.A) para deixar o cigarro, e há 10 anos freqüenta o CODA. Este grupo é freqüentado por homens e mulheres e as reuniões também seguem um padrão. A reunião começa e logo o facilitador do dia explica o que é o grupo e a co-dependência: “Co-dependência é a inabilidade de manter e nutrir relacionamentos saudáveis com os outros e consigo mesmo”. Várias pessoas fizeram menção à participação em outros grupos anônimos. As “queixas” sobre relacionamentos afetivos sexuais são muitas e freqüentes, contudo os participantes se referem a sofrimentos de natureza diversa: relação pai-filha, com os amigos, no trabalho. (Notas de campo, CODA São Paulo, 17/01/2008)

Introdução
Os trechos acima referidos são parte de minhas notas de campo a partir de observação em três grupos de ajuda mútua anônimos, localizados na cidade de São Paulo/BR e voltados para o controle ou cura de adicções relacionadas ao amor e/ou sexo, quais sejam, Mulheres que Amam Demais Anônimas (MADA), Dependentes de Amor e Sexo Anônimos (DASA) e Co-dependentes anônimos (CODA) . O que é ressaltado nestes trechos é a centralidade da motivação dos sujeitos em buscar nestes grupos anônimos apoio para superar/controlar problemas que envolvem dependências e perturbações de ordem psicológica, afetiva e sexual.
Nas últimas décadas, após a Segunda Guerra Mundial, os grupos anônimos de ajuda mútua que surgiram com objetivo de recuperação de indivíduos com vícios e problemas emocionais, proliferaram especialmente nos países ditos “desenvolvidos” (principalmente nos Estados Unidos), e depois no resto do mundo. A condição básica para ser membro destes grupos é de natureza existencial e a filiação aos mesmos se dá por auto-identificação (MOTA, 2004) .
Os Alcoólicos Anônimos (A.A), o primeiro grupo deste gênero, desenvolveu o modelo de recuperação e estratégias terapêuticas baseadas em 12 passos e em 12 tradições para que a pessoa dependente de álcool pare de beber. É a partir da propagação dos Grupos de Alcoólicos Anônimos, quando esta organização ultrapassou as fronteiras dos Estados Unidos, que muitas outras denominações de grupos de anônimos foram surgindo. O programa dos 12 passos e 12 tradições fora adaptado por outros grupos que não necessariamente estão relacionados com o alcoolismo, com a permissão do escritório de serviços mundial de A.A (MOTA, 2004).
Atualmente no Brasil, funcionam aproximadamente 17 tipos de grupos de ajuda mútua. Aqui, o primeiro a se formar foi o de Alcoólicos Anônimos, em 1947, sendo que a partir da década de 90, um leque variado de grupos anônimos passou a existir, e dentre estes, os que se pautam em adicções relacionadas ao sexo e ao amor.
No final de 2006, realizei um pré-campo exploratório na cidade de São Paulo entre os grupos anônimos de ajuda mútua, o que me permitiu toma-los como redes de sociabilidade pelas quais circulam pessoas, sentidos e significados. Sendo assim, resolvi “seguir” a rede. Foi então que passei a frequentar as reuniões das Mulheres que Amam Demais Anônimas (MADA), os Dependentes de Amor e Sexo Anônimos (DASA) e os Co-dependentes anônimos (CODA) como campos de pesquisa.
Os Dependentes de Amor e Sexo Anônimos (DASA) se definem como uma irmandade que deve ser freqüentada por homens e mulheres que desejam evitar as conseqüências destrutivas de um comportamento adicto relacionado à dependência por sexo, amor, relacionamentos românticos, emocionais e anorexia sexual, social e emocional .
O grupo anônimo de ajuda mútua Mulheres que Amam Demais Anônimas (MADA) segue as orientações do livro Mulheres que Amam Demais da terapeuta familiar americana Robin Norwood . As reuniões deste grupo são permitidas única e exclusivamente para mulheres que se definem como dependentes de relacionamentos destrutivos e/ou viciadas em relacionamentos.
Os Co-Dependentes Anônimos (CODA) afirmam ser uma irmandade de homens e de mulheres que tem como finalidade desenvolver relacionamentos saudáveis. A definição de co-dependência, segundo o grupo é a inabilidade de manter e nutrir relacionamentos saudáveis com os outros e consigo mesmo.


1. Sobre categorias e circulações
Os dados etnográficos que levantei sugerem que os sujeitos circulam para além destes três grupos que mencionei inicialmente (DASA, MADA e CODA), isto é, eles circulam por uma variedade de outros (neuróticos anônimos, emocionais anônimos, comedores anônimos, alcoólicos anônimos, narcóticos anônimos, devedores anônimos, dentre outros). No entanto, há um número significativo de pessoas que dão sentido a sua participação nos grupos anônimos a partir da freqüência nestes três que citei. Algumas freqüentam mais um do que outro, mas a grande maioria já circulou entre os três.
Além disso, eles (as) dominam as definições e categorias empregadas pelos grupos, quero dizer, todos (as) sabem o que é co-dependência, o que é um co-dependente, o que é uma mada ou um dasa e utilizam estas definições e entendimentos para explicarem suas aflições em qualquer grupo que estejam.
Aqui é importante destacar que penso à maneira de Scott (1998) , não em pessoas/individuos que têm experiência, mas sim, em sujeitos constituídos a partir da experiência. Nesse sentido tornou-se relevante para esta pesquisa mapear/historicizar a categoria/o surgimento da noção de co-dependencia/ adicção/compulsão/doença relacionadas com sexo, amor e afetividades em geral, pois estas aparecem como co-relacionadas, sinônimos nas narrativas das pessoas, bem como nos textos e materiais que os grupos produzem e consomem. Mesmo ainda não dispondo de uma sistematização completa sobre o surgimento destas categorias, eu levanto a hipótese, a partir de dados etnográficos e teóricos que o aparecimento destas categorias se deu na década de 60 e consolidaram-se como categoria explicativa na década de 70.
A reflexão de Hacking (2001) sobre a constituição da categoria de abuso infantil me auxilia de três formas. Primeiro, para pensar as “figuras do discurso”. Este autor arguenta como houve uma mudança histórica da noção de “crueldade infantil” para a de “abuso infantil” que implicou uma mudança de noções de risco e poluição, outros direcionamentos de classe, a consolidação do abuso infantil como categoria médica e a ligação metonimica de abuso e incesto. Isso se deu a partir de tecnologias discursivas e técnicas como exames, pesquisas para “mensurar” o problema, dados quantitativos, tentativas de definições precisas de diagnosticar o abuso, noções universalistas de objetividade e exportação desta categoria para outros países, nos quais essa categoria não tinha sentido, ou ainda, não adquiriu o mesmo sentido. Para ele a noção de abuso infantil pode ser pensada como uma metáfora justamente porque esconde o seu potencial metáforico. Ainda, o poder desta categoria está em conseguir reunir muitas outras frequentemente pela metáfora.
Eu ainda não disponho de dados suficientes nesta etapa da pesquisa para sistematizar o que poderiam ser “as figuras do discurso” relacionadas à co-dependencia/adicção/compulsão/doença. Mas, ao olhar para as prateleiras das livrarias encontramos uma infinidade de livros de auto-ajuda que operam muito com estas categorias, se listarmos os serviços de ajuda psicológica/psiquiatrica e terapeutica estas noções também estão presentes, e ainda, há uma popularização destas noções pelas diversas mídias. Também as noções de addicção/compulsão operam de modo semelhante a de abuso infantil conforme descrita por Hacking (2001). Elas podem referir-se a muitas coisas diferentes em contextos distintos. Ao olhar para o variado leque de grupos anônimos que operam com estas categorias de addição e compulsão podemos inferir que elas também guardam um potencial metafórico.
A co-dependencia/adicção/compulsão/doença, aqui eu me baseio em Foucault (2001; 2006) , são formas próprias da super produção de saber sociocultural sobre a sexualidade. Elas são tecnologias de comunicação que operam como técnicas de si. Como mencionei, essas noções podem referir-se a muitas coisas, contextos e problemáticas, nesse sentido é que principalmente as categorias de addicção e compulsão podem ser tudo e serem pouco explicativas. Por isso, entender o fluxo de sentidos, significados e pessoas que circula entre os grupos, como circula e porque, é importante para entender estas noções em contextos específicos, bem como a rede de sociabilidade que se estabelece entre os grupos que são relevantes no processo terapêutico que os grupos pretendem, bem como para entender a idéia de anonimato.
Outro ponto, é pensar a constituição destas categorias (co-dependencia/addicção/compulsão/doença) e como é a partir da criação delas que os sujeitos podem falar de suas experiências e renomear o que até então tinham reprimido. No entanto, isto só é possível porque há um olhar retrospectivo que permite (re)classificar e (re) valorar a experiência da infância como abusiva, no caso de Hacking (2001) de abuso sexual infantil, sendo possível, neste sentido, (re) experiência-la. Aqui está o segundo ponto no qual Hacking (2001) me ajuda a pensar. No caso de minha pesquisa eu também penso que seja possível essa (re) organização da experiência a partir do surgimento destas categorias. A partir da entrada nos grupos existe um investimento num auto-conhecimento afim de (re) experenciar e (re) ordenar o passado pelas idéias de addicção, compulsão e co-dependência. Elas são formas de apreensão que o sujeito cria a respeito de si mesmo (Foucault, 2006)
O terceiro ponto que Hacking (2001) me auxilia é refletir sobre alguns dados etnográficos. É recorrente os participantes dos grupos explicarem sua co-dependencia/addicção/compulsão, a partir dessa reordenação da experiência mencionada, pelo fato de terem sido abusados sexualmente na infância. Assim, liga-se abuso infantil e co-dependencia, pois é muito provável, segundo meus colaboradores, que uma pessoa que foi abusada sexualmente torne-se um “abusador” sexual ou emocional.
Assim, a relação entre co-dependencia/addicção/compulsão e o modo como as pessoas circulam nos grupos é relevante, porque como mencionei, essas categorias tornam-se pouco explicativas à medida que elas englobam tudo, digo uma infinidade de comportamentos. Então, atentar para o modo como as pessoas circulam entre os grupos e como explicam isso é fundamental.
Os dados etnográficos apontam que os sujeitos circulam para além destes três grupos que recortei inicialmente, isto é, eles circulam por uma variedade de outros (neuróticos anônimos, emocionais anônimos, comedores anônimos, alcoólicos anônimos, narcóticos anônimos). Contudo, há um número significativo de pessoas que dizem freqüentar os Devedores Anônimos por conta de gastos exagerados com o mercado sexual (prostituição, revistas e vídeos) ou por descontrole emocional. Esse dado tem me levado a refletir como estas redes de sociabilidade operam com elementos de consumo que criam identidades, estabelecem relações e operam como criadoras de uma ética do consumo emocional e sexual.
Nas partilhas é frequente os sujeitos ligarem descontrole emocional/sexual a descontroles relacionados a consumo e descontrole econômico. Vários são os exemplos etnográficos. Em uma reunião do grupo DASA, a escolha da “literatura” do dia foi a 7º tradição: Todos os Grupos de DASA deverão ser absolutamente auto-suficientes, rejeitando quaisquer contribuições externas. A única fonte de contribuição de dinheiro dos grupos deve ser dos próprios participantes, o conteúdo do texto sugeria um conflito entre materialidade e espiritualidade. Depois de lido é aberto para comentários dos participantes a respeito do tema.
S, uma mulher com pouco mais de 30 anos, branca, solteira, jornalista, tem um filho e inicia seu comentário dizendo sobre sua mãe no hospital e no sofrimento que passava com relação a isso. Ela continua sua partilha afirmando que passava por uma fase difícil que tem que encarar a morte, o hospital e que estava anciosa. Ela ligou o tema do dia com a diferença entre “comprar” e “usar” e que por causa do momento pelo qual passava, ela estava “comendo muito chocolate” e “comprando muito”. Ela disse que comprou 4 bolsas este mês. Ela tb fez uma distinção entre “comprar” (num sentido de consumir) e “usar”. Neste momento seus comportamentos “obssesivos”, “compulsivos” lhe “serviam” como uso - como se ela precisasse. Disse frequentar o D.A, mas que no momento não o fazia com muita disciplina.
T. é uma mulher com cerca de 30 anos, negra, trabalha na Caixa Econômica Federal e frequenta o MADA. Ela também diz ir ao D.A, pois disse que sua vida econômica é a primeira a se desestabilizar quando tudo dá errado. Disse gostar de comprar sapatos e roupas guiada por uma fantasia de que os homens vão olhá-la ou vão gostar mais dela. Mas, disse também que o fato de consumir muito é um problema para ela: “minha vida econômica independente de qualquer coisa”.
R, é um homem, aproximadamente 30 anos, universitário, me disse que todos os sábados antes das reuniões de DASA vai ás reuniões do D.A. Em partilhas já ligou seu descontrole econômico à sua co-dependência. D, também um homem com pouco mais de 30 anos, funcionário público me disse da última vez que nos encontramos, que conseguiu organizar sua vida financeira com sua frequencia ao D.A. Enfim, são muitas as pessoas que explicam sua circulação nos grupos ligando descontrole emocional com descontrole econômico e com consumo. Isso tem me dado pistas para refletir sobre recortes de classe nos grupos anônimos.
No inicio de minha pesquisa levantei a hipótese que os grupos anônimos eram frequentados em sua maioria pelas classes médias urbanas brasileiras. Alguns dados etnográficos apontavam para isso, a localização dos grupos em bairros na cidade de São Paulo, a “psicologização” dos sujeitos que frequentavam (há uma vasta produção brasileira bibliográfica sobre a psicologização das classes médias urbanas) o que as pessoas consumiam (roupas, carros, atitudes, enfim). No entanto, com a minha maior frequência nos grupos e com o aprofundamento do trabalho de campo, percebi que há uma gama que pessoas que frequentam o grupo que não são “exatamente” uma classe média, ou melhor, são, mas é como se estivessem localizadas diferentemente na estratificação dentro desta classe. Há um um padrão de consumo que se quer igual, e algumas pessoas estão melhor situadas para alcança-los, outras não. Há grupos em bairros “menos nobres” na cidade de São Paulo, e mesmo nos que estão localizados nos jardins encontramos pessoas que não têm o seu carro nem casa própria, tem empregos temporários, e para ter um padrão de consumo classe média, precisam financiar coisas, dividir em prestações.
Em conversa pessoal com Márcia Ochua , ela me disse que nos E.U.A os grupos anônimos nasceram com um enfoque disciplinar para a classe trabalhadora. Será que no Brasil temos o processo contrário? Os grupos anônimos nascem com inicitivas de pessoas das classes médias urbanas e vão trasnformando-se? Como pensar a classe entre estes grupos? Pelo consumo? Certamente eu ainda não tenho as respostas, tenho apenas perguntas que formulo hipóteses, é preciso levantar mais sobre o histórico destes grupos no Brasil.
A seguir eu discuto a idéia de “irmandade universal” imaginada e a naturalização patologização das noções de addicção e compulsão no sexo e amor.


2 .A construção de uma “irmandade universal” imaginada e suas implicações?
O sentido da categoria/noção de anônimo passa pelo compartilhamento de uma experiência em comum, e não necessariamente pelo fato de não se saber os nomes, ou quem são as pessoas que freqüentam as reuniões. Quando eu falava de meu estudo para pessoas que não participavam dos grupos, e também dizia que coletava os dados pela internet, a partir de comunidades e sites dos grupos, estas pessoas me questionavam: mas como assim? Os grupos não são anônimos?
Mas, para mim fazia todo sentido os grupos disponibilizarem sites e grupos de discussão na internet, pois cada vez mais percebia que isso não comprometia o anonimato. Pois, este está ligado à idéia “dos princípios acima das personalidades” colocado pelo grupo, bem como em aceitar estes princípios e compartilhar sua experiência de sofrimento com os outros.
Georg Simmel (1976) ao analisar a constituição psicológica e moral do indivíduo num contexto moderno e urbano, afirma que há um aferrecimento dos laços sociais de dependência e de pertença. Para ele o contexto moderno/urbano/metropolitano é caracterizado por uma sensação de desprendimento e de liberdade que necessariamente não é vivida de forma prazerosa.
Além do mais, este homem moderno, habitante dos grandes centros urbanos, é o resultado de processos históricos de desenvolvimento da individualidade os quais o teriam libertado das ligações com a tradição. Segundo o autor após a queda das hierarquias e poderes pessoais a partir de processos revolucionários, desponta o individuo que busca um reconhecimento como ser humano igual e livre, bem como sua especificidade na constituição de uma personalidade original. Para o autor, o isolamento e a e a atitude blasé surgem como contraponto fundamental no processo de constituição da individualidade.
Sendo assim, a experiência do anonimato parece estar ligada a um sentimento de pertença, como se, paradoxalmente o sujeito abandonasse um anonimato ligado a atitude blasé e à solidão da vida nos grandes centros urbanos e passasse a um anonimato entre iguais, no qual é possível experenciar um “vício” ou adicção sem ser uma “aberração”.
A construção narrativa acerca da experiência do anonimato é sempre uma tentativa de apagar as diferenças entre os sujeitos. Em várias conversas que mantive com os participantes e também nas reuniões, esse anonimato é sempre constituído a partir de uma igualdade relacionada à experiência do sofrimento, e esta tem sentido dentro de um discurso terapêutico da cura, controle da perturbação, da doença ou dos padrões de comportamento.
A narrativa dessa experiência de sofrimento em comum também tenta apagar as diferenças entre os grupos em países diferentes. É como se as reuniões, a experiência do anonimato e o sofrimento fossem iguais nos diferentes países nos quais os grupos existem. Nesse sentido, há um investimento discursivo permanente por parte dos sujeitos e do material pesquisado na construção de uma “irmandade universal”. Na minha análise, essa construção se dá pela articulação estabelecida entre tempo/espaço e lugar e a relação disso com a noção de adicção no amor e compulsão sexual.
O material etnográfico coletado por mim mostra como as reuniões dos grupos anônimos de ajuda mútua são altamente ritualizadas, configurando-se um padrão ou modelo para os encontros. Os sujeitos têm um tempo determinado para falar, cerca de 3 a 5 minutos, começam e terminam a “partilha” sempre da mesma maneira - se apresentam ao grupo, dizem quem são: uma MADA, um (a) DASA ou um (a) CODA em recuperação - e se despedem: “só por hoje”, ou “24 horas de serenidade”.
As reuniões seguem sempre um padrão, há o momento da oração da serenidade, o momento de ler a “literatura” (que é um texto escolhido no dia), o momento das partilhas, o momento de ler os “passos” e “tradições” do grupo, o momento da 7º tradição (que é a contribuição financeira que os participantes podem dar). Bem como, para as pessoas que vão pela primeira vez há uma ocasião especial da reunião para falarem e se apresentarem. As reuniões sempre são facilitadas pelos próprios membros, para isso é necessário ter 3 meses de participação em “sala”, e também há o entendimento de que a “cura” ou “controle” do sofrimento/perturbação está no poder superior.
Minha análise inicial busca demonstrar como a noção de uma “irmandade universal” só pode ser imaginada porque a discurssividade criada pelos grupos opera numa noção de temporalidade que é um híbrido de performance religiosa com modalidades culturais acerca das formas e sentidos atribuídos pelos indivíduos ao “sentimento de si” . É ao construir esse espaço/lugar- a irmandade universal- articulada com a idéia de um tempo “homogêneo e vazio” que é possível apagar as diferenças entre os sujeitos e os lugares, bem como naturalizar e patologizar a noção de adicção no sexo e/ou amor.
É a partir da construção de um lugar- a “irmandade universal”- que toma como espaço o “mundo inteiro”, no qual toda e qualquer diferença é apagada que é possível “fundar”, legitimar a idéia de uma adicção no amor e/ou sexo. Esta adicção é entendida como uma doença que a pessoa deve controlar , e uma vez descoberta ela a terá pela vida inteira, como dizem meus interlocutores: uma vez MADA sempre MADA, uma vez CODA sempre CODA ou uma vez DASA sempre DASA. Nesse sentido, a relação naturalizada que se estabelece entre lugar, espaço e noção de pessoa deve ser investigada.
É a partir da construção da addicção/compulsão no sexo, amor e relacionamentos afetivos como universais que é possível entende-los como doença. Nesse sentido, há além de uma patologização, um processo de naturalização – somos doentes do espírito- me disse um colaborador. Talvez este processo de naturalização esteja ligado, como mencionei, ao fato de experenciar uma “doença” ou “addicção’ sem ser uma aberração. Naturalizar pode ser uma forma de encontrar uma saída, uma cura. Já que nós acreditamos e valorizamos tanto a natureza como convenção cultural, como inato, como o dado.
Mas, esta experiência em comum parece estar perpassada por uma estratificação sexual da vida amorosa/sexual, bem como por uma generificação, distribuição e classificação de esferas amorosas e eróticas. O conceito de estratificação sexual é de Rubin (2003) que no texto “Thinking Sex” busca a defesa da diversidade sexual e rompe com algumas vertentes do pensamento feminista da década de 80, principalmente com as que se engajaram no movimento anti-pornografia nos EUA que fundiam gênero com sexualidade.
Sendo assim, a autora propõe a separação analítica dos dois termos, pois, para ela o sexo é um meio de opressão que atravessa outras maneiras de desigualdade social (classe, raça/etnia ou gênero) e questiona o feminismo como contexto privilegiado para construir uma teoria da sexualidade, isso porque, mesmo sendo considerado uma ideologia progressista, o feminismo estaria perpassado pela estratificação sexual (PISCITELLI, 2003) .
A noção de estratificação sexual está ligada ao fato de que nas sociedades ocidentais modernas os atos sexuais são avaliados de acordo com um sistema hierárquico de valor sexual. Sendo assim, este conceito se apóia na oposição de estilos de sexualidade considerado “bons”, ou seja, normais, naturais, saudáveis, reprodutivos, heterossexuais, monogâmicos em oposição aqueles considerados “maus”- as práticas sexuais de travestis, transexuais, práticas masturbatórias, práticas sadomasoquistas, sexo comercial ou por dinheiro.
Neste sentido, os dados etnográficos coletados sobre estes grupos anônimos apontam como estes parecem buscar os modelos tradicionais de relacionamentos sexuais e afetivos, fundamentados em uma heteronorma da vida amorosa. Mesmo quando há a presença de homossexuais masculinos ou femininos nos grupos suas narrativas parecem estar ligadas à busca por um modelo do casal, no contexto de uma relação afetiva/amorosa, entre pessoas da mesma geração e dentro de casa . No grupo DASA há reuniões “orientadas para homossexuais e simpatizantes” e no A.A, por exemplo, há um grupo GLS. É como se os grupos operassem no marco de um heterossexismo institucional que os insere dentro do binário interdepentente da hetero-homossexualidade ( MISKOLCI, 2009 ?)
Além de Simmel, outro sociólogo que abordou o tema da solidão foi Sennett (apud MISKOLCI, 2009 ?). Segundo ele podemos distinguir três formas de solidão. A imposta pelo exílio, a solidão auto-imposta pelo rebelde e a daqueles que se sentem estranhos em seu mundo, e por conta desta estranheza, separados das pessoas normais. Há um termo nativo no grupo DASA que parece traduzir este tipo solidão- é a anorexia social, emocional e sexual- ela designa a rejeição compulsiva de dar e receber nutrição social, sexual e emocional. Em uma conversa com R, frequentador de DASA, ele me disse que seu problema central era a anorexia e que o descontrole econômico e a co-dependência eram secundários, mas ligados a anorexia. Eu perguntei a ele como era exatamente isso, o que era uma pessoa anoréxica? Ele me respondeu: Sabe o anoréxico alimentar? Que rejeita comida, nutrição alimentar? Eu disse: Sei. Então o anoréxico em DASA rejeita nutrição social, emocional ou sexual, ou tudo junto.
Em muitas reuniões, também de MADA e CODA, eu presenciei “partilhas” que queixavam de uma espécie de solidão ou inabilidade para relacionar-se depois de separações, casamentos desfeitos, mortes e afastamento de pessoas consideradas queridas. É aqui que penso ser fundamental explorar a rede de sociabilidade que se estabelece. Pois, embora os grupos e suas “técnicas de si” possam operar (e me parece que operam) como “técnicas de dominação”, a rede que se estabelece oferece elementos que tem uma “eficácia terapeutica” para estes sujeitos lidarem com este tipo de solidão apontado por Simmel e Senett. Foi a partir da participação nos grupos que homens e mulheres relatam terem amizades, vontade de sair e se divertir, conversar, namorar, casar, fazer sexo pela primeira vez. Os frequentadores dos grupos passam a constituir as pessoas de um “grupo primário” dessa rede de sociabilidade, mas muitos(as) afirmam que a partir daí conseguiram fazer e ou entrar em outras redes (trabalho, família e outras). No ínicio do meu trabalho de campo, em uma reunião de DASA havia uma senhora velha, uma velinha, que destoava etariamente de todos (as). Esse é um dado importante a ser investigado, as classes de idade nos grupos, há uma permanência/padrão de intervalos etários e sofrimentos comuns, mas enfim, de qualquer forma essa mulher de mais de 70 anos destoava, de todas as reuniões que fui e que estou indo. Ao final da reunião, ela veio conversar comigo, dizendo que nunca tinha me visto. Expliquei a ela o que fazia ali. Mas, ela não me deu muita atenção e disse: Seja o que for, venha sempre, aqui você fará bons amigos, é muito bom!
Até este momento, no campo de pesquisa que fiz todas as pessoas que vi afirmarem estar em anorexia sexual, e por isso se tornaram “viciados” em masturbação, vídeos, revistas pornográficas e sexo pago, foram homens. No entanto, a anorexia sexual entre os homens parece decorrer da anorexia social e emocional, ou seja, a inabilidade de manter relacionamentos saudáveis com uma parceira (o). Mas, também um padrão de comportamento altamente masculinizado e erotizado para os homens é interpretado como um problema.
S. ao comentar a eficácia terapêutica do DASA fala sobre seu comportamento “compulsivo”, diz que tem “tendências compulsivas” – por exemplo - procurar prostituas. Ele afirma que com a ajuda do grupo passou a fazer isso uma vez por mês e que isso não caracterizava uma “compulsão”. Nesse sentido, freqüentar as reuniões o tem ajudado, pois conseguia passar dias sem se masturbar e sem procurar muito por pornografia. Para ele, atualmente, seu comportamento caracteriza uma “tendência” e não propriamente uma “compulsão”. Este homem é solteiro, negro, tem por volta de 35 anos e afirma ter dificuldades de “chegar nas mulheres”, bem como afirma ainda gostar de sua ex-namorada.
Para ele procurar demasiadamente por sexo pago acarreta culpa, pois é um gasto que eu poderia estar tendo com outras coisas, por exemplo, com minha família. Na sua narrativa, S comenta sobre a capacidade dos seres humanos fantasiarem: para mim isso não é um problema – todas as pessoas fantasiam- o problema é quando a fantasia não é saudável, eu quero ter fantasias saudáveis
A. é um rapaz branco, tem por volta de 30 anos, seu corpo é malhado e suas roupas marcam seus músculos. Em seu depoimento diz ser sua primeira vez no DASA, no entanto freqüenta há mais de 10 anos o CODA. Ele afirma que seu problema é a “mulherada”, que gosta mesmo é da “energia nervosa”, da “adrenalina” e não pode ver um “rabo de saia”. No DASA, mais do que no CODA, eu me sinto a vontade para falar sobre prostituição e sobre pegar prostitutas, e dá entender que já saiu com muitas mulheres na mesma noite, entre mulheres que ele “pegou” e outras que pagou. Para ele seu comportamento é um problema, pois em nome dele já fez muitas loucuras.
Em seguida, F. um homem branco, por volta de 40 anos diz que antes de entrar para o grupo: eu sexualizava até um pedaço de pizza. Ele afirma que está numa onda de assexualização e abstinência sexual e emocional, ou seja, não quer manter, por hora, nenhum relacionamento afetivo-sexual porque se encontra em recuperação.
Segundo N., homem branco em torno de 50 anos, ele está há 15 anos sem se relacionar afetivo/sexualmente com uma mulher. O primeiro grupo anônimo que freqüentou foi o A.A para conseguir parar de beber. No DASA, sua motivação para participar foi se livrar de um relacionamento doentio que teve durante anos com uma mulher, e depois que conseguiu parar com seu padrão nunca mais namorou ou teve um relacionamento. Ele afirma que pelo fato de estar há muitos anos sem manter relações sexuais, várias vezes se masturba e assisti filmes pornográficos. Contudo, todas as vezes que ouvi N partilhar, ele sempre explicita seu desejo por um relacionamento, por uma namorada.
As mulheres também se definem como anoréxicas. Mas, esta anorexia sempre está relacionada a uma fobia de relacionar-se social ou amorosamente. Na maioria das vezes, elas não entram em detalhes sobre uma dimensão erótica dessa anorexia. No depoimento de L. mulher com 30 anos, ela afirma que – não gosto de sair e transar com os caras sem amor
Se, apresadamente concluirmos a respeito de uma estratificação de gênero nos grupos, a partir destas narrativas e de outras nos outros grupos, essa conclusão será em direção a uma ordem tradicional sobre uma possível estratificação de gênero. Mas, os dados etnográficos sobre a circulação dos sujeitos, do porquê circulam e de quando circulam, como se surpreendem, pode ser reveladora da melhor maneira de como abordar/entender gênero nesta pesquisa. Para explicar o que quero dizer, cito Mariza Corrêa em seu texto feminina/masculino: a natureza imaginária no livro antropólogas e antropologia, quando está escrevendo sobre a biografia de três mulheres: Heloísa Alberto Torres, Leolinda Daltro e Doutora Emília:
Colocando-as ao lado de seus colegas profissionais, no entanto, e analisando suas trajetórias no contexto da época de cada uma, começam a emergir definições de feminina e de masculino explicitadas em disputas pelo poder , pelo prestigio ou por privilégios de vários tipos e pela atribuição a elas de um estatuto ambíguoi, como se se tratasse de seres andróginos a quem é preciso conjurar, desmentir, redefinir tão logo essa atribuição se expresse nos discursos a respeito de seus feitos cientificos . Movimento de estranhamento, primeiro (que faz essa mulher num grupo de homens?Deve ser homem...), de re-alocação, em seguida(mas vejam que belo chapéu ...feminino, logo de desqualificação(sendo mulher...não poderia ser cientista-ou vice-versa). Lidos de hoje, alguns dessses movimentos parecem tímidas estratégias de re-afirmação da impermeabilidade das categorias masculino/feminino, da regidez das fronteiras entre homem e mulher. Vividos na época devem ter parecido táticas cruéis de exclusão social. A constante re-afirmação desta impermabilidade e desta rigidez é também o melhor indicador de incerteza, insegurança, na definição dessas mesmas categorias na prática: quais seriam, afinal,os elementos indiscutiveis de separaçã, de constituição daquele traço (/) que as separa, se um misero item de vestuário alterado (chapéu ou calça, no caso das pesquisadoras de campo), um pequeno gestonão sintonizado (“adamado”, no caso de um naturalista de Museu), ou o simples estar lá num espaço onde sua presnça não era prevista, as punha em questão? (CORRÊA, 2003, p. 30)

Aqui, é preciso guardar as devidas diferenças entre pesquisas e campos etnográficos diferentes. Mas, a maneira como a autora rejeita concepções rígidas calcadas no dimorfismo sexual nesta passagem, joga luz sobre alguns dados etnográficos que tenho. Eu mencionei acima que, A. um rapaz que frequenta há 10 anos o CODA, foi a primeira vez ao DASA e se sentiu a vontade de falar sobre seus problemas com a “mulhereada” e de seu sofrimento pautado nessa sua compulsão. Muitos homens frequentam os grupos (menos o MADA, que é frequentado apenas por mulheres) por não se sentirem bem com seus comportamentos altamente erotizados. Mais de uma vez, vi mulheres irem ao DASA, declararem serem uma MADA e dizerem que estavam felizes por estarem ali e ver que os homens também sofriam de amor ou porque tinham comportamentos altamente erotizados. Bem como, conversei com várias mulheres que diziam irem ao grupos para pararem de utilizarem os homens como meros “objetos” sexuais
Talvez gênero, neste caso, explique melhor se utilizado como categorias ou metáforas de esferas sociais. Além da estratificação sexual da vida amorosa há uma generificação, distribuição e classificação de esferas amorosas e eróticas. Assim, parece que o espaço/lugar/motivação para a afetividade e para o amor é feminilizado enquanto o espaço/lugar/motivação para o erotismo é masculinizado. Nesse sentido, na busca por uma ética do consumo emocional e sexual homens e mulheres precisam buscar por relações e por este espaço/lugar/motivação feminina, ou, caso estejam em excesso nele, precisam controlá-lo.....

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